A intervenção precoce é um direito reconhecido pela Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, pela Convenção sobre os Direitos da Criança, pelo Plano de Ação do Pilar Europeu dos Direitos Sociais e pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, sendo uma obrigação dos países o investimento na primeira infância, uma vez que a assistência não é importante apenas pelo impacto no aprendizado e no desenvolvimento das crianças, mas também contribui para a sustentabilidade do sistema financeiro do país.
Em novembro de 2023, o presidente Lula lançou um conjunto de metas para fortalecer a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. Dando continuidade às ações, em junho de 2024 tivemos um avanço legislativo com o lançamento da Política Nacional de Atendimento Educacional Especializado a Crianças de Zero a Três Anos (Atenção Precoce), a lei n° 14.880, que determina prioridade de atendimento em programas de visitas domiciliares a crianças da educação infantil apoiadas pela educação especial e a crianças da educação infantil com sinais de alerta para o desenvolvimento (MEC, 2024). A nova lei também pretende garantir o atendimento educacional especializado e o acompanhamento multiprofissional para bebês e crianças de até três anos com deficiência, o que pode sustentar práticas mais avançadas neste campo, na direção preconizada pelo movimento internacional, justificando ainda mais a necessidade de investigações, condições de implementação e formação profissional.
Esta lei tão esperada traz uma possibilidade, um respaldo legal para se atuar no contexto da Atenção Precoce em uma abordagem já utilizada há pelo menos 30 anos em outros países, no contexto real de desenvolvimento das crianças (por meio de visitas domiciliares) e na perspectiva de suporte e protagonismo das famílias.
Temos estudado as Práticas Centradas na Família e identificado que são práticas recomendadas com muitas evidências científicas. Temos coordenado um curso de especialização desde 2021 pela UFSCar com esta temática (Intervenção Precoce na Infância: práticas centradas na família e nos contextos naturais) e formado até o momento 120 especialistas, entre eles, professores, coordenadores, gestores da área de educação. Desta forma, temos a intenção de trazer para a formação proposta essa reflexão como uma possibilidade de mudança de paradigma no campo da Atenção Precoce no Brasil.
Pretende-se trazer para esta formação uma reflexão sobre como a temática que temos investigado - as Práticas Centradas na Família em Intervenção Precoce - tem grande possibilidade de ser aplicada diante da nova Lei da Atenção Precoce.
A nova Lei da Atenção Precoce ou Política Nacional de Atendimento Educacional Especializado (AEE) a Crianças de Zero a Três Anos pode estar em consonância com a atuação do professor do AEE e a oferta do serviço de AEE, conforme previsto na Resolução CNE/CEB nº 4/2009, por meio da incorporação de diretrizes que reforçam a intencionalidade pedagógica, o protagonismo da criança, a articulação intersetorial e a formação profissional.
No contexto da nova lei da Atenção Precoce, o professor do AEE atua como mediador pedagógico no desenvolvimento integral da criança de 0 a 3 anos, promovendo experiências educativas adaptadas às suas especificidades, envolvendo a família nesse processo, conforme previsto também na resolução.
Compreende-se que a Lei da Atenção Precoce vem para ampliar as ações do AEE, pois como a resolução prevê o uso de salas de recursos; a nova lei propõe a adaptação de espaços pedagógicos e a criação de materiais que atendam às especificidades das crianças de 0 a 3 anos, integrando o serviço às rotinas da família e da criança, podendo ocorrer tanto no ambiente escolar quanto em outros espaços intersetoriais.
Assim como a Resolução 04/2009 destaca a necessidade de formação continuada para os professores do AEE, garantindo que eles sejam capazes de planejar e executar práticas pedagógicas inclusivas, compreende-se que a nova lei da Atenção Precoce enfatiza a importância de capacitar os profissionais para atuar com crianças pequenas e suas famílias.
Também como ponto de consonância, entendemos que a Resolução 04/2009 traz a importância de envolver a família no planejamento e execução do AEE, considerando sua colaboração essencial no processo educativo, enquanto que a Lei da Atenção Precoce amplia esse princípio, colocando a família como protagonista no desenvolvimento da criança, especialmente em contextos de interação no ambiente domiciliar.
As visitas domiciliares, quando possíveis de serem realizadas, potencializam o conhecimento do profissional do AEE acerca da realidade familiar da criança nos diversos momentos do dia, facilitando a tomada de decisão junto com a família sobre objetivos, recursos e tecnologias a serem explorados na Sala de Recursos Multifuncionais, que podem e devem ser expandidos para os demais espaços frequentados pela criança. Como, por exemplo, as Tecnologias Assistivas.
Salientando que as Tecnologias Assistivas não são da escola ou da Sala de Recursos Multifuncionais. São da e para a criança utilizar em sua vida cotidiana. Portanto, a família, suas necessidades, rotinas, recursos e realidades precisam ser consideradas ao longo deste processo. Afinal, quem estará com a criança em todo o percurso de desenvolvimento infantil, implementando, acompanhando, auxiliando, conhecendo os pontos positivos ou de entrave para a utilização da Tecnologia Assistiva será a família.
É importante considerar que cada Rede de Ensino tem sua estrutura quanto a organização/gestão do tempo na prática pedagógica do profissional do AEE. Para alguns, a realidade de visitas domiciliares já ocorre. Compreende-se a necessidade de apresentar essa realidade e possibilidade para proporcionar uma reflexão e pensar em estratégias viáveis no decorrer do curso.
O modelo teórico das Práticas Centradas nas Famílias (PCF) não tem abordagem terapêutica e parte do pressuposto de que a família é a protagonista no desenvolvimento da criança, que ocorre e é potencializado nos contextos naturais de aprendizagem, incluindo o contexto escolar.
No Brasil, a intervenção precoce tem sido historicamente associada ao contexto terapêutico e cuidados relacionados à saúde. Entretanto, as Práticas Centradas na Família (a abordagem que trazemos para esta formação e que é tema de nossa investigação há pelo menos 10 anos, mas já é difundida há pelo menos 30 anos nos EUA e Europa) é originada de um referencial bioecológico e transacional. Segundo Bronfenbrenner (1996), o desenvolvimento humano se dá em múltiplos sistemas, e o ambiente familiar e escolar são considerados nesta teoria como microssistemas, onde a família é essencial, por ser o primeiro espaço educativo da criança, e o ambiente escolar, onde as relações acontecem e dão suporte e continuidade ao desenvolvimento da criança, ou seja, ambos são contextos significativos que promovem a aprendizagem e a participação ativa da criança.
Ainda, os autores Dunst, Trivette e Deal (1988), principais teóricos destas práticas, argumentam que o enfoque das PCF é o empoderamento familiar e o fortalecimento de suas competências para apoiar o desenvolvimento da criança; as atividades inseridas nas rotinas, quando estruturadas e apoiadas, tornam-se oportunidades pedagógicas. Dessa forma, as famílias aprendem a usar estratégias educacionais no dia a dia, promovendo o aprendizado por meio da interação com o ambiente e as experiências significativas. Como o pressuposto das PCF é a capacitação das famílias para potencializar o desenvolvimento das crianças, ampliam o acesso e a equidade educacional, o que é especialmente relevante na primeira infância e no contexto da atenção precoce.
A abordagem das Práticas Centradas na Família em Intervenção Precoce está vinculada ao Modelo Social de Deficiência, pois ambas promovem a valorização do contexto social e das relações familiares no desenvolvimento da criança. O Modelo Social de Deficiência desloca o foco da condição individual (biomédica) da criança para as barreiras sociais e ambientais que dificultam sua participação plena na sociedade.
Nas Práticas Centradas na Família em Intervenção Precoce, a família é vista como a principal protagonista no cuidado e no desenvolvimento da criança, e os profissionais trabalham diretamente no contexto natural das famílias em parceria com os pais e cuidadores, reconhecendo que eles têm um conhecimento profundo sobre as necessidades e capacidades da criança. Isso contrasta com abordagens mais tradicionais que focam exclusivamente nas limitações/déficits da criança e em intervenções que tentam "corrigir" ou "normalizar" essas limitações.
Essa visão está alinhada ao Modelo Social de Deficiência, que defende que as barreiras e a exclusão social são os verdadeiros obstáculos para a inclusão das pessoas com deficiência, e não a deficiência em si. As Práticas Centradas na Família, nesse sentido, promovem o empoderamento das famílias para que possam lidar com essas barreiras e apoiar a criança a se desenvolver em um ambiente que valorize suas capacidades e ofereça suporte para enfrentar os desafios impostos pela sociedade. Ambas as abordagens compartilham uma perspectiva que prioriza a inclusão social e o reconhecimento da diversidade humana, além de combater a estigmatização e a exclusão.
Dessa maneira, compreende-se que a nova política chamada de Atenção Precoce pode amparar essa abordagem e trazer um avanço na atenção a famílias e crianças de 0 a 3 anos. Torna-se importante trazer essa discussão aos profissionais que atuam diretamente com as famílias no contexto do AEE, de forma que possam refletir sobre as ações, contextualizá-las dentro dessa nova política e refletir sobre as possibilidades de atuar em rede intersetorial.
A presente proposta de formação está em consonância com as diretrizes da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, que tem como objetivo o acesso, a participação e a aprendizagem dos alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação nas escolas regulares, orientando os sistemas de ensino para promover respostas às necessidades educacionais especiais (MEC, 2007). Bem como a Resolução nº 4, de 2 de outubro de 2009, que estabelece em seu Artigo 2º que: O AEE tem como função complementar ou suplementar a formação do aluno por meio da disponibilização de serviços, recursos de acessibilidade e estratégias que eliminem as barreiras para sua plena participação na sociedade e desenvolvimento de sua aprendizagem. O nosso objetivo é capacitar professores, oferecendo estratégias práticas e conteúdos teóricos que os preparem para atuar junto aos alunos público da Educação Especial.
A formação utiliza uma dinâmica participativa, mesclando atividades síncronas e assíncronas em pequenos grupos, que promovem a discussão sobre as práticas reais do AEE; utiliza metodologias ativas e emancipatórias, que incentivam os cursistas a ter participação ativa na construção do conhecimento e pensar em suas competências de atuação com práticas voltadas para o empoderamento das famílias atendidas pelo AEE.
Destaca-se que a formação proposta será baseada nos princípios da acessibilidade e do desenho universal; dessa forma, pretende garantir que todo o processo de ensino e aprendizagem seja acessível e utilizável por todas as pessoas. Isso inclui: metodologias inclusivas, uso de recursos educacionais adaptados (textos, vídeos, softwares), ambiente de aprendizagem virtual que possibilite a participação de todos integralmente.
Em consonância com os objetivos traçados e as estratégias a serem utilizadas na formação, a formação pode criar condições aos profissionais para que possam efetivamente implementar ações que atendam às demandas da nova legislação da Atenção Precoce e das necessidades das crianças e suas famílias.
Os resultados esperados desta formação abarcam:
a) instrumentalização dos professores do AEE para elaboração e execução de planos de AEE com a sustentação do referencial das Práticas Centradas na Família e alinhados com a nova legislação da Atenção Precoce, articulando com os demais professores do ensino regular e com a participação das famílias (em consonância com os Art. 9o e 13 o da Resolução 04/2009);
b) reflexão sobre diretrizes para a inclusão das famílias no processo de atenção precoce, promovendo o empoderamento e participação ativa nas ações educativas, adequadas às suas realidades locais;
c) fortalecimento de redes de apoio intersetoriais que envolvam educação, saúde, assistência social e as famílias, de forma a facilitar o intercâmbio de informações e a prestação de serviços integrados à criança e à família, como a oferta de programas e de ações de visita domiciliar e de outras modalidades que estimulem o desenvolvimento integral na primeira infância, sempre respaldada por políticas públicas sociais e avaliada pela equipe responsável (Art. 14 ,§ 4º, lei 113.257/2016), assim como estabelecer parcerias com as áreas intersetoriais na elaboração de estratégias e na disponibilização de recursos de acessibilidade (em consonância com o Art. 13 cap. V da Resolução n. 4, 2009);
d) criação de comunidades de prática para troca de experiências entre os profissionais de diferentes regiões e contextos;
e) novas proposições de formação continuada, na direção de atualização dos profissionais sobre novas práticas no AEE e a Atenção Precoce.